Mas Afinal a Música Serve Para Quê?
Vem isto a propósito das comemorações dos 30 anos sobre a edição do álbum “Never Mind the Bollocks, Here’s the Sex Pistols” dos Sex Pistols. Por muitos considerado a “pedrada no charco” (eventualmente noutros sítios também), é um dos marcos fundadores do movimento punk em Inglaterra. Alguns dos frequentadores cá da tasca até sabem que gosto de bandas de rock do movimento progressivo do início dos anos 70 e o punk é muitas vezes apontado como a contra-corrente que devolve o rock às massas, de onde vilmente os progressitas o tinham retirado. Confesso já não ter paciência para esta discussão, mas ainda se lêm peças jornalísticas, como esta escrita por Vítor Belanciano, no Público de 28 de Outubro de 2007:
“Se a música fosse apenas música, talvez nem nos lembrássemos deles. Os Beatles tiveram mais fãs a puxar pelos cabelos. Os Rolling Stones estão aí para ganhar o prémio de longevidade. Os Doors não eram verdadeiramente um grupo, eram Jim Morrison. Os Velvet Underground tinham pinta, mas apenas para uma imensa minoria. Dos Pink Floyd é difícil perceber o fascínio.”
Estão a perceber o fascínio que me causa a última frase. Pode questionar-se até que ponto uma peça jornalística é apenas isso, ou seja, tendo o propósito de dar informação objectiva, ou mais do que isso, sendo também uma corrente de opinião pessoal. Não vale a pena discutir sobre este assunto, porque sinceramente me estou nas tintas para a opinião do Vítor Belanciano, mas sinto desconforto com esta posição sobranceira de “incompreensão” para com quem ache fascinante ouvir e (cruzes canhoto!) gostar de Pink Floyd. Pessoalmente, eu também acho “incompreensível” o fascínio pela Madonna, mas a partir de uma certa altura um gajo cresce, é mais maduro, e começa a sorrir complacentemente com as afirmações de quem parece ainda espremer borbulhas ao espelho da casa de banho. Mas a seguir, surpresa:
“Mas porque a música não é apenas música, estando ligada à maneira de os indivíduos pensarem, agirem e viverem, sendo uma das formas mais antigas de atribuir identidade, associada em certos períodos com movimentos sociais e políticos e com formas alternativas de experimentar o mundo, os Sex Pistols são um dos grupos mais importantes de sempre da história da música popular.”
Ora aí está, meu caro Vítor! A música não é apenas música, assim como a literatura não são só romances de cordel, há os que pensam que a música pode também ser muito mais que um simples grito de revolta, por muito urgente que ele seja, ou meia dúzia de acordes tocados à pressa em menos de 3 minutos por quem não distingue uma pauta de música do papel de embrulho da mercearia. Como cada um de nós, age, pensa e vive de forma diferente, é natural que exprima essa atitude na música que faz de forma igualmente diferente. O que não é compreensível aqui é que nos sintamos surpresos por uma significativa maioria não pensar exactamente como nós. E com isto não retiro nenhuma das virtudes e importância ao único álbum dos Sex Pistols, bem pelo contrário. A música vale precisamente pela multiplicidade de formas de expressão, qual caldeirão étnico onde o mundo pode ser visto com cores diferentes. É que já tenho a barba rija e rezo para que não me apareçam borbulhas, que estas com a idade arriscam-se a já não desaparecerem.
Mas agora analisemos os resultados de alguma desta revolta urgente e súbita na altura, passados estes anos, ainda nas palavras de Vítor Belanciano:
“Entretanto, os quatro sobreviventes, o cantor John Lydon, o baixista Glen Matlock, o guitarrista Steve Jones e o baterista Paul Cook - Sid Vicious, que também integrou a banda, faleceu em 1979 -, vão reagrupar-se para uma série de cinco concertos.”
Eh lá! Então estes gajos, que foram o mais contra-sistema que a Inglaterra viu nascer na música popular nos últimos anos, vão na conversa de apoiar uma iniciativa para engordar os cofres das multinacionais da música com as vendas de mais uma catrefada de discos, mais a reedição dos singles, já para não falar dos concertos?
“Em 1976, as taxas de desemprego eram as maiores de sempre desde a II Guerra Mundial e o Governo conservador de Margaret Thatcher era contestado por aqueles que não conseguiam imaginar o futuro. A utopia hippie finava-se. Os ideais contraculturais eram a nova norma. Aos baby-boomers que haviam tentado mudar o mundo e aspiravam à "paz e amor" respondiam os Pistols com No future, expressando impotência e cólera, numa atitude niilista, contra a sociedade, contra o panorama rock da época, contra tudo.”
Pois... mas passados estes anos, mais parece aquela cena de ver o Durão Barroso, estudante de Direito em pleno PREC, com discursos inflamados, a exigir que pendurassem todos os capitalistas pelos tomates (ou seja, os “bollocks” dos ditos), hoje como o insigne presidente da Comissão Europeia.
“...o jornalista e escritor francês Benoit Sabater resume a acção do grupo: "Eles não queriam reconstruir nada. Apenas criar situações caóticas, de forma esteticamente relevante, nas ruas ou em palco. A sua música criou uma nova dinâmica, mas também as capas, o visual, os corpos abandonados, as suas declarações. As situações criadas por eles não pretendiam gerar um mundo mais fraterno, mas sim mostrar que tudo era simulacro. Era necessária uma inversão de valores. Fazer tábua rasa de tudo. Tudo."”
Acho notável que, passados estes anos, mais velhos e maduros (supõe-se, ou talvez não) não consigam perceber que o simulacro não só se mantém como também fazem parte dele, porventura mais amplo que há 30 anos atrás, e mais invisível. Revolução, precisa-se! Deixem ficar o “Never Mind the Bollocks” que até nem faz mal às mentes, mas apagem-me é estes gajos que já estão vendidos ao sistema!