Entrar em cadeias faz-me sentir preso e eu prezo a minha liberdade, mas em tempos a nossa amiga Rita desafiou a equipa cá da casa para uma destas actividades que acabou por não acontecer. Recentemente, nova investida aconteceu e em face do tema até acho que vale bem a pena dedicarmos um tempo das nossas vidas a eleger um livro, um disco e um filme que, de alguma forma, nos tenha marcado, ainda para mais com o aliciante de ser um português e um internacional. Falarmos sobre os nossos gostos e do que nos marcou é também uma forma de falarmos de nós próprios e de nos darmos a conhecer. Ora aqui vai:
Um Livro
Nacional: “Finisterra” de Carlos de Oliveira. Há poucos livros que tenha lido e que tenha sentido vontade de os voltar a reler no instante seguinte a os ter acabado. Mais raros são aqueles em que isso aconteceu de facto. Este foi um desses casos raros. Nem sequer consigo explicar porquê, mas a leitura deste livro de um autor português muito esquecido é de uma beleza indescritível e é pura poesia romanceada (ou romance poético, como preferirem). Não se explica, lê-se e é urgente passar por ele.
Internacional: “Narciso e Goldmundo” de Hermann Hesse. Uma busca da vida, da beleza e perfeição das coisas. Para sempre há-de ficar retida na minha memória a descrição notável da ressaca após alguém ter a noção consciente de que produziu uma obra-prima. E um confronto de personalidades, algo que já tinha sido explorado em “Ele e o Outro” (“Klein und Wagner”) de forma menos conseguida embora igualmente brilhante.
Um Disco
Nacional: “Coisas do Arco da Velha” da Banda do Casaco. Não foi algo de imediato, mas conheci este disco na altura em que saíu em 1976, e passados estes anos fui-me apercebendo de como um bando de visionários transformou e transfigurou por completo os cânones da música tradicional portuguesa, misturando um manancial de estilos da forma mais imaginativa possível. Olhando para as obras produzidas em solo luso, nada até aos dias de hoje sequer se assemelha ao que a Banda do Casaco conseguiu na época em que reinaram. E pensar que eram conotados como reaccionários de direita é a prova acabada da imbecilidade e provincianismo que, até aos dias de hoje, nos afecta de forma profunda.
Internacional: “The Lamb Lies Down on Broadway” dos Genesis. Estávamos em finais de 1974 e não é propriamente normal que um puto que tinha apenas 9 anos de idade andasse a ouvir coisas deste calibre. Acontece que o irmão de 17 anos ouvia destas coisas e era o modelo a seguir. Ao sexto disco de estúdio, os Genesis gravam a sua obra-prima, um disco ecléctico a piscar o olho à modernidade, com um forte cunho pessoal de Peter Gabriel em consequência do qual acaba por gerar tensões na banda e levar ao seu abandono do grupo no ano seguinte. Antes da despedida, o tour de apresentação do álbum ainda passou pelo Dramático de Cascais, coisa rara na altura ter bandas destas a pisar solo nacional, e é o concerto da minha vida que nunca vi (com 9 aninhos, o que é que eu estava à espera?). Durante anos este disco atormentou-me pela sua estranheza sendo uma obra singular na carreira dos Genesis. Hoje, não tenho dúvidas que o meu gosto musical foi muito influenciado por este disco (e outros também, obviamente), abrindo-me os olhos (e os ouvidos) para as manifestações mais estranhas da música.
Um Filme
Nacional: “Recordações da Casa Amarela” de João César Monteiro. Continuo a achar que é quase uma obra singular no universo cinematográfico português: bem realizada, melhor argumentada e competentemente filmada. Em vez de andarmos com acessos de intelectualismos ou banalidades telenovelescas, ou seja, o 8 e o 80, bem podiam os realizadores aprender a olhar para os clássicos e preocuparem-se em fazer apenas uma coisa: um simples filme!
Internacional: “2001: A Space Odyssey” de Stanley Kubrick. No tempo em que haviam reposições nos cinemas em Lisboa, ver este filme no grande ecrã do Apolo 70 foi uma experiência única. Uma Obra de Arte (assim mesmo, com maiúsculas)! O poder visual e musical, as valsas no espaço, o negro e o silêncio, o Homem e a Máquina, a tecnologia alienígena como instrumento do divino. Uma referência absoluta. Depois deste filme, a ficção científica nunca mais poderia ser a mesma.
Para finalizar, a todos os que resistiram a ler isto até aqui, levam com a maldição de fazerem o mesmo no vosso blogue, sabendo de antemão que se não o fizerem a vossa vida vai caír em desgraça, o Sócrates nunca mais vai saír do governo, os combustíveis irão subir mais 500%, o Santana Lopes é nomeado presidente do PSD porque a Manuela Ferreira Leite vai aceitar um cargo de Provedora dos políticos da 3ª idade, e o país irá mergulhar numa depressão profunda que o vai fazer desligar para sempre do futebol. Por isso, vejam lá o que fazem, está bem?