Wednesday 3 February 2010

O Fim da Estrada


O livro “The Road” de Cormac McCarthy, foi não só amplamente elogiado como acabou vencedor de um Pulitzer, pelo que deu naturalmente lugar a uma versão cinematográfica, estreada entre nós há umas semanas. Não sendo conhecedor da obra de McCarthy, senão pela mão dos irmãos Coen através do filme onde a força presencial daquela personagem inacreditável interpretada pelo Javier Bardem é esmagadora, a curiosidade para ver o filme foi ainda alimentada pela sugestão do camarada M.A. cujo conselho foi bastante oportuno.

Falar deste filme não é fácil. Tendo sido visionado há mais de uma semana, os seus ecos ainda reverberam no meu cérebro. Não direi que estamos perante um filme perfeito ou de uma obra-prima, mas estamos seguramente perante um dos filmes mais perturbantes que me foi dado a conhecer nos últimos anos. Para começar, vamos depurar alguns detalhes que, embora façam pouco sentido, são na realidade irrelevantes para o essencial da história mas que convirá esclarecer. O cenário pós apocalíptico que se vive no período em que decorre a acção não permitiria a sobrevivência da espécie humana, ou de qualquer espécie superior, em detrimento das restantes espécies de quem as primeiras dependem e que basicamente foram extintas por um processo ou mecanismo que nos é completamente desconhecido. Aparte esta imprecisão científica que, conforme se afirmou, se revela irrelevante, o autor apenas pretende tornar ainda mais dramática e desesperante a situação em que a espécie humana se vê confrontada, como uma espécie de gedanken experiment, facto que desde logo desclassifica o filme (ou o livro) como ficção científica. E esta é a pedra de toque de tudo o que está por detrás da história. Tal situação limite leva a espécie humana a cometer actos de perfeita barbárie, do qual o canibalismo não será seguramente o único, sob condições que não são passíveis de imaginarmos, nem sequer perante as maiores catástrofes que a humanidade já tenha passado em qualquer período da sua história. Neste contexto somos levados a seguir um pai e um filho na luta diária pela sobrevivência, mas mais importante, na sua luta pela manutenção e preservação da réstia de humanidade que sobra num mundo hostil e sem esperança. É essa esperança que os faz lutar e viver, como a crença num El Dorado que não seja apenas uma simples miragem das memórias de um passado ao qual não é possível regressar. A realização é contida e a ambiência do cenário é transmitida pelos tons cinzentos predominentes, de um céu permanentemente encoberto de cinzas e chuvoso, de locais urbanos em ruinas deixados a um abandono desolador, de um mar (azul, não era?) envolvido por uma bruma persistente que não quer desaparecer. Algumas cenas são chocantes, sem contudo entrarem pelo voyeurismo barato e pornográfico em que muitos filmes tentadoramente caem. Depois há o trabalho de actores, pois é sobre eles que recaem as despesas da história, e bem, pois é algo que um certo cinema mainstream tem vindo a passar progressivamente para segundo (ou mesmo enésimo) plano. A transfiguração que John Hillcoat impôs aos que nos aparecem no ecrã é extraordinária a ponto de tornar quase impossível reconhecermos algumas das faces do cinema (Robert Duvall é um exemplo). Viggo Mortensen mostra-nos mais uma vez a sua capacidade em compôr personagens de valor singular, ao nível do melhor que nos habituou nas duas experiências que partilhou com Cronenberg (A History of Violence e Eastern Promisses). Os flashbacks tornam-se, em certa medida, supérfulos e irrelevantes, mas não ao extremo a que alguma crítica os colocou. Em última análise, foram uma opção do realizador, mas também poderiam não ter sido. Finalmente, falta mencionar o desconforto com que o final deixa o espectador, pois a sensação ambígua em perceber se a história continua ou não bem, estranhamente persiste. O retrato não podia ser mais desencantado e deprimente e qualquer mensagem de esperança vê-se, no máximo, pela greta de uma porta que não sabemos quando será fechada. Daqui sobra agora a vontade de ler o livro, pois se os elogios já eram superlativos e faziam temer a incapacidade de uma trasnposição cinematográfica decente, este resultado só antevê que o melhor ainda estará para vir.


(4/5)

1 comment:

O Puto said...

Um dos melhores que vi este ano. Acabei de ler o livro e vi o filme no dia seguinte.