Saturday 13 February 2010

Turn Sixty


Foi há 3 anos que abri este estabelecimento, e à terceira postadela estava a dar os parabéns ao David Bowie pelos seus 60 anos de vida. Agora, estou a fazer a mesma coisa para o Peter Gabriel. E a oportunidade não poderia ser melhor dado que daqui por dois dias sai o seu novo disco, agora a reinterpretar músicas escritas por outros, desde Paul Simon e Neil Young aos Radiohead, Magnetic Fields e Bon Iver, num total de 12 temas. E também é verdade que Bowie e Gabriel têm uma ligação entre si, não só pelo facto de no próximo disco de Gabriel haver uma versão do “Heroes”, como foram ambos os expoentes máximos da teatralização das performances musicais nos anos 70. Bowie num registo, apesar de tudo, bem mais contido que o de Gabriel que levou os Genesis à capa da New Musical Express quando, numa performance do grupo e surpreendendo os próprios colegas que desconheciam o que se iria passar, entra em palco com um vestido vermelho e uma máscara de raposa enfiada na cabeça. O rapaz tímido e contido, com um ego ainda latente, acabaria por expôr todos os seus desejos e ideias nos concertos dos Genesis que levariam os restantes membros da banda a não acharem muita piada ao caminho que se estava a tomar, porque a música parecia ficar para segundo plano e os admiradores cada vez mais associavam a banda a uma extensão de Peter Gabriel, quando na realidade a mesma fora criada na base da comunhão e participação de todos na composição musical. A corda esticou e acabou por rebentar com o álbum “The Lamb Lies Down on Broadway”.

Decorridos mais de 2 anos e alguma clausura fora do barulho das luzes, Peter Gabriel começa a sua carreira a solo com a edição do seu primeiro álbum sem nome a que se seguiriam mais 3 na mesma linha, conhecidos simplesmente por I (1977), II (1978), III (1980) e IV (1982), ou por “Car”, “Scratch”, “Melt” e “Security”, aludindo à fotografia da capa dos discos ou, no caso do último, pelo nome como foi editado nos Estados Unidos. O tema “Solsbury Hill” do primeiro registo, recuperado como hit no álbum “Plays Live” de 1983, era a expiação dos fantasmas e dos acontecimentos que levaram à saída de Gabriel dos Genesis. Neste primeiro álbum, Peter Gabriel explora várias formas de expressão musical, incluindo uma das suas favoritas, o soul. É um disco ainda agarrado ao passado e a dar corpo à afirmação pessoal. No disco seguinte começam as sementes do experimentalismo e a colaboração com Robert Fripp (produtor do disco). Um disco algo desequilibrado mas denunciador dos elementos que antecipavam as ideias para o disco seguinte e que se pode considerar uma herança do “The Lamb...” com os Genesis. Robert Fripp tinha, com este disco de Peter Gabriel, o de Daryl Hall que nunca saíu e o seu “Exposure” de 1979 (que inclui versões de dois temas de discos de Peter Gabriel e o “North Star” cantada por Hall) a intenção (entretanto gorada) de criar esta trilogia de discos a sair em 1978. O grande salto iria ocorrer com o terceiro registo, uma obra prima que, de forma algo injusta, raramente é considerada como tal. Gabriel consegue criar uma atmosfera e um estilo musical único, carregado de negrume onde os sons dos instrumentos são depurados ao essencial, e juntos constroem as peças musicais suportados pelas percursões. Neste disco começa igualmente uma abordagem a temas como o medo, e exclusão e a consciência política mais activa. Da abertura de “Intruder” com a utilização da técnica gated drum que lhe confere uma força incomum, ao clássico hino anti-apartheid “Biko” cuja guitarra inicial emula um grito lancinante de angústia, passando pelo hit “Games Without Frontiers”, o disco nunca é menos que muito bom. O passo seguinte foi a continuação destas ideias mas em que a experimentação e a exploração dos ritmos africanos vão tomando forma, num álbum cuja produção sonora é irrepreensível e o primeiro, senão dos primeiros, misturado digitalmente.


A admiração de Peter Gabriel pelo cinema e demais formas de arte audio-visual já vem do tempo dos Genesis com as performances de “The Lamb...” e quando o realizador de “O Exorcista” o convida para uma colaboração mercê da leitura de um dos seus textos surrealistas e impenetráveis. Apesar dessa oportunidade nunca concretizada, o cinema acabou por ter um papel fulcral na sua carreira, encimada pela banda sonora de The Last Temptation of Christ (1989) de Martin Scorcese e de Rabbit-Proof Fence (2002) de Phillip Noyce. No entanto, o período após 1982 veria um Gabriel mais preocupado com uma vertente pop materializada no seu disco “So” de 1986 e produzido por Daniel Lanois. Disco explorador de uma síntese brilhante das ideias anteriores e de ritmos soul e r&b que deram lugar a “Sledgehammer”, o qual representa um marco na produção vídeo, merecedor de vários elogios e prémios. Continuava assim a demanda pela performance e mistura de diferentes formas artísticas. O disco alcançaria um sucesso sem precedentes e, ironicamente, destronaria do top o álbum da sua antiga banda. A componente exerimental ía sendo deixada para segundo plano, mas a faixa final, com pouco mais de 3 minutos, é reveladora da especial aptidão que demonstra para explorar atmosferas negras. De permeio ainda teve uma colaboração com Laurie Anderson na co-autoria de “Excellent Birds” no disco “Mr Heartbreak” de 1984. A dispersão por diferentes actividades, que incluem a fundação de uma editora dedicada à promoção de músicas do Mundo, deixam cada vez menos espaço para a criação musical. Os registos começam a ser muito espaçados, e “Us” de 1992 é uma espécie de condução em piloto automático e o continuar do filão de “So” mas com resultados muito mais modestos, se não tanto comerciais pelo menos artísticos. Tirando os projectos paralelos cinematográficos, teríamos de esperar dez anos pelo registo seguinte, “Up”, de 2002. Parece uma espécie de “sit back, relax, and think what you've done”. Referências à vida, mas em especial à morte e ao(s) medo(s), é a constatação que é nestes campos onde Peter Gabriel se mexe melhor, conseguindo uma ambiência e atmosferas que mostram que a vontade de fazer algo novo e consequente não morreu. Não sendo um disco de assimilação imediata, é uma síntese equilibrada de muitas ideias dos registos de “III” e “IV”, complementadas por ideias atentas à música da altura e um certo requinte orquestral resultado dos anos de experiência. É pois um disco de alguém que não precisa de demonstrar nada a ninguém, despojado do acessório embora não do adorno sóbrio. De salientar o tema de abertura, “Darkness”, cujos momentos sujos e agressivos denotam que ouve, ou ouviu, Nine Inch Nails, pelo que não é de estranhar que tenha sido Trent Reznor a remisturar alguns dos temas incluídos no lado b dos singles.

Em 2010, Peter Gabriel faz 60 anos, faz um disco de versões de músicos e bandas que cobrem o espectro temporal da sua vida artística, do passado à actualidade, e volta a trabalhar com Bob Ezrin, produtor do seu primeiro disco em 1977. Uma bela súmula condensada no ciclo da vida, com as críticas a inidiciar que, mais uma vez, Peter Gabriel consegue manter um estatuto de criação artística que, embora embaciado pelos anos, mantém um brilho que poucos conseguem manter ao longo de uma carreira com esta longevidade, sem discutirmos se é melhor ou pior, pois isso não compete ao próprio, mas aos que ainda o ouvem com gosto. E eu sou um deles.

4 comments:

jorgeteixeiraakajorgeteixeira said...

Não gosto muito deste novo disco. Mas concedo que ainda não o escutei convenientemente

strange quark said...

Pois eu gosto, se é que estás a falar do Scratch My Back. A princípio, aquela de enfiar uma orquestra deixou-me de pé atrás. Mas quando a inteligência para agarrar os temas domina, o resultado só podia ser o que foi. Sobriedade e consciência do lugar onde se está. Recomendável!

Shumway said...

Apesar de gostar do "solo" Gabriel (e especialmente o 3 e 4), este disco é ,para mim, uma verdadeira surpresa.

Abraço

strange quark said...

Sem dúvida que é uma surpresa. E também pouco consensual o que, a meu ver, é o mais interessante de tudo. O facto é que Peter Gabriel foi buscar uns quantos temas que estão entre o melhor que os respectivos autores fizeram (Bowie, Radiohead, Young, Arcade Fire) o que deixa quem conhece os originais tudo menos indiferente. Por outro lado, como sinal de inteligência, utiliza as suas limitações vocais como instrumento de teatralização das suas interpretações. Dificilmente não se considera o resultado como positivo, e é bem verdade que podia resultar em desastre.

Um abraço