Thursday 7 June 2007

O Efeito “Caracóis de Ouro”


Já andava prometido e tinha este texto escrito há um tempo quando dei conta, nestes dias, da publicação do livro “The Goldilocks Enigma: Why Is the Universe Just Right for Life?”, por Paul Davies (Allen Lane, 2006) e que trata precisamente do assunto aqui abordado.

Pois bem, para quem não conheça a história infantil, “Caracóis de Ouro” (Goldilocks) era uma menina que um dia, quando passeava na floresta com um mau humor tremendo, decidiu entrar descaradamente na casa de uma família politicamente correcta de 3 ursos (pai, mãe e filho) e desatar a bisbilhotar e usar sem permissão tudo o que lhe aparecia à frente. A situação descrita na história e razão deste post é a particularidade de somente o que pertencia ao urso filho servir na perfeição a Goldilocks (“it’s just right” como afirmava). E o que é que isto tem a ver com ciência?

Tal como a moral de uma história, com o “Efeito Caracóis de Ouro” pretende-se realçar que há certas coincidências (ou serão meras limitações do nosso conhecimento?) que parecem ter-se conjugado todas para o nosso bem-estar, seja para a nossa própria existência no Universo ou na Terra. No primeiro caso, podemos evocar a raíz desse problema no chamado “Princípio Antrópico”. Dito de uma forma muito (muito) simples, admite que o Universo é como é porque nós existimos e, enquanto espécie inteligente, podemos efectuar observações nesse mesmo Universo. Existem contudo outras variantes do princípio, originalmente proposto pelo astrofísico Brandon Carter em 1973. John D. Barrow é um astrofísico inglês que tem livros dedicados a este assunto, um dos últimos, “The Constants of Nature: From Alpha to Omega” (Jonathan Cape, London, 2002), foi de onde retirei estes exemplos. Não deixa de ser inquetante que quando se consideram os valores que certas constantes da Natureza devem tomar para que o Universo seja habitável se chegue a uma desconfortável zona restrita, apesar dela representar a confortabilidade da nossa existência. Ou seja, considerando a razão entre as massas do electrão e do protão e a constante da estrutura fina (nome para uma constante que se define pelas constantes da carga do electrão, de Plank, velocidade da luz no vácuo, gravítica universal e massa do protão, e cujo valor é aproximadamente 1/137), a área onde se podem desenvolver estruturas no Universo é deveras apertada: um pouco mais de uma e não existem estruturas ordenadas; um pouco menos de outra e não existem estrelas; um pouco mais de ambas e não existem átomos não relativistas... Se metemos a força nuclear forte ao barulho também não chegamos muito longe: de menos e os elementos essenciais às formas de vida que conhecemos não se formam; demais e forma-se o diprotão (hélio-2) que permite um consumo rápido do hidrogénio das estrelas, ou seja, consomem-se demasiado depressa e não sobra tempo suficiente para originar estruturas vivas complexas. Em termos do Universo, parece que as leis da Natureza são “just right” para nós pulularmos por aqui e eu andar a chatear quem (ainda) tem a paciência de ler esta prosa. Filosoficamente, para mentes racionalistas, não deixam de ser questões desconfortáveis para as quais não há uma resposta satisfatória. Alguns, mais afoitos, até se aproveitam da situação para propalar que esta é uma prova de que Deus existe. Não exageremos! No entanto, até parece que o Universo foi feito para nós, e de encomenda!... Será?

E o Planeta Terra? Nos últimos tempos têm-se descoberto vários planetas extra-solares e é óbvio que existe na mente de quem empreende estas buscas ou de quem somente vai dando conta das notícias, que há uma esperança de, um dia, se descobrir um planeta como a Terra, com as condições favoráveis para o desenvolvimento da vida. E que condições são essas? Quando alguns cientistas começaram a pensar de forma mais séria sobre o assunto, chegaram à conclusão que a Terra parece ser bem mais especial do que se pensava. Mais, que a nossa existência (ou sobrevivência) resulta de um punhado de eventos felizes e coincidentes, tão difíceis de conciliar de uma só vez que a probabilidade, sequer, de se terem repetido no Universo é extremamente baixa. Nesse sentido, Peter Ward e Donald Brownlee, geólogo e astrónomo, respectivamente, da Universidade de Washington em Seattle, publicaram o livro controverso “Rare Earth” (Copernicus, Springer-Verlag, 2000) e que acaba por ser uma resposta à equação de Drake, apresentada num post anterior. Nele se argumenta porque é que a vida complexa deverá ser efectivamente rara no Universo. A talhe de foice vêm também as diversas condições para o desenvolvimento e sobrevivência da vida. Desde logo a nossa posição na galáxia, a Via Láctea, o tipo de galáxia e a idade actual do Universo. Mas comecemos por dar outros exemplos, um por um:

1. A distância do Sol: mais perto e isto era um forno; mais distante e era um frigorífico;
2. A massa do Sol: dá-lhe um tempo de vida suficientemente longo e não acaba de forma catastrófica, além de não emitir muitos raios ultra-violetas (não fosse a nossa camada de ozono...)
3. Órbitas planetárias estáveis: nomeadamente a existência de planetas com uma massa grande;
4. A massa da Terra: consegue reter uma atmosfera (um problema em Marte) e mantém um interior activo que resulta na Tectónica de Placas (os continentes andam todos à deriva na superfície do planeta). A Tectónica de Placas é uma manifestação externa do interior tumultuoso que permite, entre outras coisas, manter um termostato à custa do CO2 e dos silicatos através da meteorização (alteração) das rochas (só válido à escala dos milhões de anos) e gera o campo magnético terrestre sem o qual éramos continuamente bombardeados por raios cósmicos de alta energia;
5. A presença de Júpiter: devido à sua enorme massa pode enviar para longe de perigo um grande número de cometas e asteróides. Se a Terra estivesse constantemente a ser bombardeada (como já foi no passado remoto, e tem sido embora com uma frequência baixa) não havia vida que perdurasse por muito tempo;
6. A Lua: a sua dimensão e distância estabiliza a inclinação do eixo de rotação da Terra em relação à sua órbita. O próprio ângulo, não sendo muito grande, permite que as estações existam e não sejam muito severas.

E existiriam ainda alguns pontos adicionais... Em suma: “It’s just right!” mais uma vez. Is it?

Pode ser uma profissão de fé como outra qualquer, mas para mim tudo isto é sinal de quão pequenos somos perante a nossa ignorância. E continuo a dispensar a existência de Deus sem qualquer problema.

3 comments:

extravaganza said...

Sou céptica quanto a essa questão do "It’s just right!"... Céptica e leiga, acrescente-se. Apenas acho que a nossa ignorância, nesta matéria, é tão vasta como o Universo, tal como tu próprio defendes. Como, aliás, se tem constatado ao longo dos últimos anos: o que é quase certo hoje, amanhã já não o é.

Curiosamente, tenho constatado que o ser humano tem tendência a Deusificar tudo o que lhe transcende, incluindo nesta área, o que poderá parecer um contra-senso...

Muito bons, estes posts. Por mim, venham mais 5! :)

O Puto said...

Sem dúvida que parecem demasiadas condições certas (nunca pensei que fossem tantas, apesar de ter consciência delas todas) para que a vida se tenha desenvolvido na terra, mas se ela germinou é porque também houve alguma adaptação. No entanto, não consigo deixar de pensar nisso do "it's just right". Que post do caraças!

O Puto said...

Onde escrevi "terra" deveria ter escrito "Terra". Sorry, my beloved Earth.