Wednesday, 7 February 2007

Breve Trapalhada de Quase Tudo (I)


O que acontece quando temos uma bela camisa, ou uma blusa lindíssima, e de repente lhe pregamos uma nódoa? Para além de um sentimento de irritação quase instantâneo, por vezes acompanhado por uma ou outra palavra, em quantidade e qualidade dependente da latitude no espaço nacional mas que o decoro me impede de dar um exemplo, é igualmente óbvio para quem presencia a cena que aquela mancha, por muito pequena que seja, toda ela extravasa para além da simples peça de roupa não deixando qualquer espaço para vislumbrar a mesma. A função social dessa peça perde-se assim em segundos. Imagine agora que, em vez de uma, você pregou uma dúzia de nódoas. É o desastre completo! Pois bem, a minha apreciação deste muito elogiado livro de Bill Bryson, "Breve História de Quase Tudo” (2004, Quetzal Editores), está ofuscada pelas dúzias de nódoas que o autor lhe pregou, coadjuvado ainda em alguns detalhes pelo responsável editorial em Portugal.

Este livro não é novidade, mas algo que por vezes é contraproducente é o sentido de autoridade que a escrita, especialmente se abençoada por uma chancela editorial (em tempos mais negros era da igreja), pode transportar como se a palavra impressa não contivesse um erro, um mal-entendido, um disparate que fosse, e como tal seja assimilada como verdade absoluta. Se este poder não existisse, não creio que muitos e conceituados especialistas se dessem ao trabalho de desmontar as alucinações históricas, científicas e tecnológicas de Dan Brown. O que se passa com o livro de Bill Bryson até pode ser menos grave do que parece à primeira vista pelas linhas de texto que me dei ao trabalho de escrever. O autor mostra uma admiração sincera pela ciência, percorrendo um espaço fundamentalmente assente nas Ciências Naturais, em particular na Geologia e Biologia. Claro que está longe de abarcar tudo, e Bill Bryson teve o cuidado de reduzir ao mínimo indispensável o percurso pela Física e Química, evitando assim entrar em terreno perigoso e muito movediço para quem não é um frequentador assíduo dessas paisagens. O livro é divertido? Sem dúvida! E momentos houve em que não resisti soltar umas boas gargalhadas. O anedotário científico é extenso e Bill Bryson socorre-se desse expediente várias vezes, o que ajuda a desmistificar a ideia que o cientista é uma pessoa chata, distraída, insociável, inculta (para além do que estuda, e não há equívoco maior do que este), mostrando que a ciência é feita por homens (e menos por mulheres, assunto que merece um comentário à parte) como nós com atitudes nos antípodas dos clichés habituais. Bill Bryson oferece-nos assim uma visão descomprometida da ciência tal como ele a observa, e numa linguagem obviamente acessível, ou não fosse o autor um observador externo que teve, honra lhe seja feita, de penetrar no jargão por vezes obscuro em que se move a própria ciência. Empreender tal tarefa comporta os seus riscos, e Bill Bryson é corajoso o suficiente para se ter lançado de alma e coração a este projecto, e por isso não saíu completamente ileso conforme irei demonstrar a seguir.

Começemos pelos problemas que este livro tem, os quais se podem enquadrar em dois planos diferentes. Em primeiro lugar, no próprio autor que, não sendo um cientista, empreende uma louvável e esforçada tarefa de escrever sobre ciência. Contudo, isso não o isenta de responsabilidades em não ter procurado alguns especialistas que lhe pudessem rever o texto e polir a escrita onde ela resvala para a asneira completa. Em segundo lugar, no mau hábito das editoras nacionais (com uma honrosa excepção, mas que em tempos passados cometeu a mesma asneira em algumas áreas) raramente pegarem em revisores científicos cuja intervenção pode ser fundamental em duas fases: na revisão do texto traduzido, dado que a tradução dos termos científicos não corresponde simplesmente à pesquisa num qualquer dicionário linguístico, de onde a esmagadora maioria estão ausentes, e no complemento da própria obra original, que não raras vezes é necessária, e neste caso concreto ainda mais; no fundo fazer aquilo que o autor se esqueceu de fazer. Mas vamos a exemplos concretos.

(Continua amanhã)

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