Tuesday 15 May 2007

A Parcialidade da Natureza Humana

Pode parecer que os nomes que se dão às coisas sejam apenas meras questões de formalismo linguístico, mas não é verdade. Em matéria de ciência, a linguagem deve procurar atingir sempre dois princípios básicos: simplicidade e rigor. E é disto que se trata e mais nada! Serve esta pequena introdução a um texto publicado pelo Professor Galopim de Carvalho, no jornal Público de 5 de Maio passado, sobre a mudança do nome do ICN (Instituto de Conservação da Natureza). Claro que os nomes são apenas a face visível de algo mais profundo a que se deveria dar mais importância, e que é o cerne da questão levantada por este texto. E porque já estamos em plena actividade do Ano Internacional do Planeta Terra (2007-2009), embora o mesmo seja apenas decretado pelas Nações Unidas em 2008, o texto que transcrevo do Professor Galopim de Carvalho servirá para dar o mote e alertar para uma parte da Natureza que, tão injustamente (para ser brando nas palavras), alguém quer ver esquecida. E também pela sua clarividência.


Natureza: biodiversidade e geodiversidade

O Presidente da República encorajou, no seu discurso do 25 de Abril, os jovens a não se resignarem. Já não sou jovem, mas escrevo porque não me resigno com a mudança de nome do Instituto da Conservação da Natureza (ICN) para Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade (ICNB) estabelecida pelo Decreto-Lei n.º 136/07. Biodiversidade é uma forma de dizer, numa só palavra, diversidade biológica, ou seja, o conjunto dos seres vivos. É, para muitos, a parte mais visível da natureza, mas não é, seguramente, a mais importante. Outra parte, com idêntica importância, é a geodiversidade, sendo esta entendida como o conjunto das rochas, dos minerais e das suas expressões no subsolo e nas paisagens. No meu tempo de escola ainda se aprendia que a natureza abarcava três reinos: o reino animal, o reino vegetal e o reino mineral. A biodiversidade abrange os dois primeiros, e a geodiversidade o terceiro. Estando assente, e bem, que biodiversidade é parte integrante da natureza, a designação agora decretada para este importante organismo do Estado é, no mínimo, desnecessária e redundante. Esta redundância vem de trás. Ficou consagrada em 2001 na Estratégia Nacional para a Conservação da Natureza e da Biodiversidade, na sequência da Convenção sobre a Diversidade Biológica (Conferência do Rio, 1992). O nome vem daí, mas custa-me a crer que, num organismo onde trabalham mais de quarenta biólogos e uma quinzena de arquitectos paisagistas, ninguém tenha chamado a atenção do legislador para esta aparente ingenuidade que, cientificamente, raia o ridículo - a menos que alguém me explique aquilo que me parece inexplicável. Está fora de causa qualquer juízo crítico à reestruturação deste instituto, mas ela poderia ter sido feita sem mudar o nome original, que era sintético, coerente, expressivo e, por isso, mais correcto. Retirar a biodiversidade da natureza é o mesmo que retirar o sobreiro do conjunto das árvores, o bacalhau do dos peixes, o papagaio do das aves, os morcegos do dos mamíferos, os jornais do da comunicação social e por aí adiante, num nunca mais acabar de exemplos disparatados. Ao enfatizar a componente biológica, a nova designação do ex-ICN torna mais evidente a subestima que, lamentavelmente, a nossa administração tem manifestado pelos valores da geologia. Como se a paisagem e a civilização não dependessem do substrato geológico. Os governantes deveriam estar mais elucidados sobre o papel da geodiversidade na civilização moderna, na prospecção e exploração das matérias-primas metálicas e não metálicas, dos combustíveis fósseis e nucleares, das águas subterrâneas, para não falar no conhecimento dos riscos sísmico e vulcânico ou no dos terrenos sobre os quais se edificam barragens, pontes e outras grandes obras de engenharia. É que, apesar de na quinta das 10 opções estratégicas aprovadas em 2001 se propor "desenvolver em todo o território nacional acções específicas de conservação e gestão de espécies e habitats, bem como de salvaguarda e valorização do património paisagístico e dos elementos notáveis do património geológico, geomorfológico e palentológico", nem o decreto-lei que lhe deu seguimento, nem a Portaria n.º 530/07, que lhe fixa os estatutos, têm um artigo, uma alínea, uma palavra referente à componente geológica da natureza. Mas tem meia centena de referências à biodiversidade. Esta pouquíssima importância dada à geodiversidade por este instituto fica, aliás, bem demonstrada pelo número de geólogos que ali trabalham, menos do que os dedos de uma mão entre 180 técnicos superiores. Que país é este que tem na geodiversidade (mármores, granitos, cobre, zinco, volfrâmio, estanho) a maior fonte de riqueza e a subestima na instituição que seria suposto zelar por ela? É o mesmo país que extinguiu, em 2003, o Instituto Geológico e Mineiro. Valha-nos Santa Bárbara!

A. M. Galopim de Carvalho

Geólogo

Público (5/Maio/2007)

3 comments:

extravaganza said...

Fiquei traumatizada com a Geologia. Pelo menos com a que tive no 10.º ano: a Prof. Rosa Maria tinha uma péssima capacidade para ensinar e eu vi-me grega para fazer a cadeira com um 10 arrancado a ferros (ao contrário das outras cadeiras todas). Posso dizer que foi das poucas vezes que me senti um verdadeiro "calhau", a quem as definições e conceitos não entravam, por mais que estudasse o livro de trás para a frente (parecia que lia chinês).

Vai-se a ver bem, e se calhar o legislador é da minha família... Pelo facto apresento as minhas desculpas.

strange quark said...

Compreendo bem esse trauma e não me admira nada, por várias razões, a primeira das quais é que a Geologia lida com conceitos pouco intuitivos e difíceis de apreender para os quais é fundamental que a pessoa que os transmita o faça bem. Sem isso, nada feito. Por outro lado, vê-se a Geologia como uma colecção de rochas e minerais, mas é bem mais interessante do que isso. Para mim (aqui já deves desconfiar que este é o meu verdadeiro ramo de actividade) tem a vantagem de ser verdadeiramente multidisciplinar como poucas disciplinas o são. A minha actividade docente, paralela à investigação, tem-se dedicado à Cristalografia que envolve uma parte substancial de Química e Física do Estado Sólido com uma perninha em Teoria de Grupos da Matemática (a simetria dos cristais), modelação matemática de Ciclos Geoquímicos, e tenho estado igualmente envolvido no ensino de métodos numéricos e computação a problemas geológicos... ou seja, uma visão de todo incaracterística da Geologia.

Há posts que tenho em mente escrever sobre alguns destes assuntos que acho verdadeiramente fascinantes. Mas fazê-los implica estarem bem estruturados e pensados, e isso dá trabalho. Mas lá chegarei... :)

extravaganza said...

A sério... Nunca me tinha sentido tão burra na minha vida!! E depois diga-se que a turma era indisciplinada como tudo, o que não facilitava a tarefa da Prof!! Desde então (e já lá vão 18 anos) o termo "geologia" continua a provocar-me náuseas (nada pessoal!!). Mas venham de lá esses posts! :))