Hugo Pratt
O nome de Hugo Pratt diz certamente menos à maioria das pessoas que o da sua criação artística maior: Corto Maltese. Mas este texto pretende, acima de tudo, falar mais do homem e menos da obra, a pretexto de um livro que já saíu em finais de 2005 sob o título “O Desejo de Ser Inútil” e que li com um prazer imenso nas férias de 2006. É uma autobiografia, em estilo de entrevista, conduzida por Dominique Petitfaux que passa em revista a vida e a obra de Hugo Pratt. Nele encontramos o homem fascinado pelas viagens, os livros de aventuras, o esoterismo, a Veneza da sua infância, a Cabala e o judaísmo e, claro, as suas belas mulheres. Aqui se alicerça muito da sua obra gráfica, em especial nos livros de Corto Maltese, cujo espírito livre e aventureiro não poderia ser melhor alter-ego para a personalidade de Pratt. O próprio Pratt foi um viajante compulsivo, peregrino de mitos e lugares espalhados pelo Mundo fora, construindo assim parte da matéria prima com que alimentava os livros de aventuras que desenhava e publicava. As suas visões de adolescente na Itália fascista não deixam de ser curiosas, e até surpreendentes atendendo ao sentimento solidário entre todos os seus amigos venezianos (e restantes habitantes de Veneza, supõe-se). Por isso, era comum haver uma amizade cúmplice entre pessoas entricheiradas em lados diferentes da barricada. A passagem pela Eritreia é bastante marcante já que é aí que o seu pai, militar italiano deslocado durante a guerra, acaba por morrer. É igualmente visível o sentimento orgulhoso de uma ascendência que provém dos lugares mais diversos (Irlanda, França e Itália, com uma costela judaica). Aliás, Hugo Pratt fez jus a essa tradição deixando filhos pelo Mundo como na Argentina ou Brasil (um deles numa tribo índia da Amazónia). No fim, nota-se a autoridade de um homem que viveu mais que muitos de nós algumas vez conseguiremos viver.
A segunda parte do livro debruça-se sobre a obra nas diferentes vertentes. Um espelho da sua vida e dos seus próprios interesses, fascinado pela beleza feminina, é um belíssimo retrato que nos permite compreender também a pessoa que está para além da sua obra. De autor anónimo até ao reconhecimento internacional a grande escala, o percurso foi lento mas seguro, mantendo Pratt a sua independência para com os meios culturais e intelectuais onde se movia. No final, uma adenda à que foi a segunda edição deste livro, dando conta dos últimos dias de Hugo Pratt até à data de 20 de Agosto de 1995, quando faleceu. As ilustrações que acompanham o livro são um precioso complemento à leitura e muitas vezes uma extensão necessária para acompanhar o texto escrito. Finalmente, ainda somos presenteados com um conjunto de aguarelas inéditas. Um livro a não perder, quanto mais não seja por nos mostrar como a inutilidade de certas coisas se torna tão útil nas nossas vidas.
Hugo Pratt - O Desejo de Ser Inútil
Dominique Petitfaux
Relógio D’Água, 2005
8 comments:
Gosto muito de ambos!
Agora vou ali fazer festas à minha colecção do Corto Maltese!:)
Lembro de começar a ler Corto Maltese na revista Tintin, em pranchas a preto e branco (infinitamente preferidas às a cores) e ir criando em mim um crescente de admiração pela obra. Todas as histórias são bastante boas, mas guardo em especial "A Balada do Mar Salgado", "A Fábula de Veneza" e a "Casa Dourada de Samarcanda", cidade que gostaria de visitar.
E neste dia, há 100 anos, nascia Hergé, criador do repórter mais famoso da bd, Tintin. Aqui fica, pois, esta homenagem a uma arte Maior, a bd, normalmente vista como menor (para quem é míope)...
gosto muito dos dois, do Corto e do Tintin. era o delírio, ler as BD's, eram da minha irmã.. mas eu 'papava' aquilo tudo!
é verdade, faz hoje 100 aninhos. No Sound - Vision vão fazer uns quantos posts sobre as aventuras do grande Tintin:)
Eu "diría mesmo mais"... apetece-me pular como o Calvin que aparece nos comments da Rita! "Com mil milhões de raios e coriscos!"
:)
Iupiiiiiii! BD rules!
Por falar em Calvin...também gosto!...
:)
Eu também me lembro de acompanhar várias Bd´s nessas revistas que eram de um Tio e estavam todas encadernadas!
As primeiras aventuras do Tintim foram lidas pelo meu Pai, quando eu era ainda tão pequena que não sabia ainda ler!:)
Strange Quark, penso que alguns dos impropérios do Capitão Haddock podem dar bons posts sobre temas bem científicos!:)
Se me começam a puxar pela BD nunca mais paro...
O Clavin também é uma das minhas referências preferidas recentes. E a revista Tintin foi o meu irmão que a começou, mas veio a terminar em 1984 (mas creio que estou enganado, não me lembro bem da data). Acabei por herdar a revista e dediquei-me uns tempos a andar por alfarrabistas a reconstituir a colecção desde o número 1. Quase que o consegui (faltam-me 2 volumes). E isto dava pano para mangas, pois revistas em Portugal da época pós-Tintin (que se iniciou em 1968), mas a puxar para a BD franco-belga e portuguesa, contam-se:
Jacaré (uma raridade que me falta o 17º e último número publicado)
Visão (um marco, no pós-25 de Abril, para a BD portuguesa em pleno PREC; onde foi publicado o "Eternus 9" do Vitor Mesquita)
Spirou (também não sairam muitos números)
Flecha 2000 (a primeira investida da Meribérica/Liber)
Selecções da BD (1ª e 2ª séries) (a segunda e última investida da M/L)
Lx Comix (um projecto de revista de BD portuguesa, mas que não passou de 4 números)
Métal Hurlant (versão portuguesa, mas de vida fugaz, pela Devir) - foi a última que adquiri.
Um destes dias (ou anos) ainda vou dedicar um post a cada uma destas revistas. Sempre me faz devolver aquelas páginas à luz do dia.
Nestes últimos anos tenho perdido a referência do que sai e do que vale a pena. No fundo, a inexistência de revistas limita imenso o que se conhece, e é pena que assim seja.
E viva a BD! :)
Eu também gosto imenso de revistas!...:) e também pensei fazer um blog só dedicado às minhas colecções... mas as paixões às vezes são esmagadoras...
Porém, Strange Quark, tu és meticuloso!
Creio que não estás muito errado na data em que terminou a Tintim, mas também não consigo verificar isso com excatidão!
A última revista literária que, sem miopias, dedicava umas quantas e boas páginas à BD em cada número era a revista Ler, mas não a tenho visto ultimamente!
Viva!
PS - e Enki Bilal? e Borgeon?
Pronto! Estão-me a puxar pela língua... isto é, pelo teclado.
Adoro Bilal, desde que publicaram as primeiras obras em português "O Cruzeiro dos Esquecidos" e "A Cidade Que Não Existia", mas "A Caçada" (Partie de Chasse) é sublime. A série dos "Companheiros do Crepúsculo" de Bourgeon é sempre aconselhável. E as cidades de François Schuiten? O intimismo de Didier Comès? O mundo apocalíptico no futuro de Auclair com Simon du Fleuve? As histórias desconcertantes de Moebius (Les Yeux du Chat, por exemplo)? As visões com LSD de Phillipe Druillet? (não acredito que este tipo não tomasse nada enquanto desenhava aquelas pranchas)
E também o já aconselhado "Ibicus" de Pascal Rabaté. É um sem fim...
Não posso pensar muito nisto senão não faço o que devo. :)
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