Thursday 19 April 2007

Coisas do Arco da Velha (#1)


Mais um título emprestado, desta vez a um dos mais importantes grupos musicais que alguma vez apareceram em Portugal: refiro-me à Banda do Casaco. Com o intuito de puxar um pouco pelas memórias, irei abrir esta rubrica precisamente com a Banda do Casaco, agradecendo assim, em forma de homenagem, o uso do título do seu segundo disco retirando da Arca escondida das Memórias coisas que são, também, do Arco da Velha.

A Banda do Casaco resulta da reunião entre António Pinho, membro fundador da Filarmónica Fraude, e Nuno Rodrigues, a que se juntam Celso de Carvalho e, mais tarde, António Pinheiro da Silva. No entanto, na formação da Banda do Casaco encontramos um leque variado de músicos, que ora vêm ora vão, de uma qualidade excepcional. Destacam-se, de entre outros, Carlos Zíngaro, Armindo Neves, Mena Amaro, Né Ladeiras, Rão Kyao, Gabriela Schaff e Jerry Marotta (na altura, baterista da formação que acompanhava Peter Gabriel, em estúdio e em palco). A Banda do Casaco prima por um certo eclectismo musical, que ora tinha raízes no folclore, ora era pop, ou rock, ou experimental, ou sei lá que mais... A mistura era, no entanto, tudo menos inconsequente ou desajustada. Aliada à primorosa estrutura musical haviam as palavras de António Pinho, que deambulavam por paisagens bem portuguesas regadas com uma dose muito forte de ironia e algum surrealismo. O retrato de Portugal era por vezes amargo e triste, e apesar de terem a sua obra editada no pós 25 de Abril não impediu que, de certa forma, tenham visto a sua mensagem calada. Na realidade, mais um caso de incompreensão generalizada, matizada pelas vistas curtas de uma certa inteligentzia nacional, intelectualóide e bacoca. A situação mais gritante ocorre com aquele que é considerado por muitos uma das obras-primas da música portuguesa “Hoje há Conquilhas Amanhã não Sabemos”. Recuperado dos escombros (se assim podemos dizer) em 2006, é significativa a mensagem que encontramos no interior da re-edição em CD escrita por Nuno Rodrigues: “Que obscura guia de marcha terá tido o Património Cultural de empresas intervencionadas pelo estado e administradas por heróicos militares após o 25 de Abril?”. De facto, como é possível que as masters originais desta obra tenham, pura e simplesmente, desaparecido? Acto exemplificativo de um Fahrenheit 451, obra homónima de Ray Bradbury, cuja leitura aconselho, e que foi transposta para o cinema por François Truffaut.


Por ocasião dessa re-edição, António Pinho e Nuno Rodrigues deram uma entrevista ao Nuno Galopim no suplemento 6ª do DN de 1 de Dezembro de 2006, de que vale a pena transcrever a seguinte passagem:

NG – E com os músicos da época, como se relacionavam?

NR – Relativamente mal, porque não nos percebiam. Lembro-me de um concerto em 1977, na Aula Magna...
AP – Precisamente onde mostrámos o Hoje Há Conquilhas...
NR – Era um concerto com a Brigada Vítor Jara, os Trovante e nós. Foi uma noite escaldante... A Né Ladeiras, que estava na Brigada Vítor Jara (e veio depois para a Banda do Casaco), veio dizer-nos que parte da sala estava inflamada porque corria o boato que nós tínhamos acabado de chegar de Londres para gravar o hino do MIRN. Enviámos para o palco, primeiro, o Carlos Barreto. Pedimos-lhe que tocasse com o contrabaixo uma improvisação de uns dez minutos até toda a gente estar perfeitamente enraivecida.
AP – Não estávamos a fechar o espectáculo porque a organização achava que éramos os mais famosos. Eles prepararam o grande prato final que era o vamos massacrar estes tipos! Atirámos o Carlos Barreto. Estávamos todos nervosos porque era um apupo contínuo... A história está muito bem relatada no livro de memórias do Manuel Faria, dos Trovante. Aquilo era um urro tremendo. E fiz, à saloia, aquilo que, hoje, o cantor mais pimba faz num arraial popular: dirigi os apupos. Esquerda, direita, e de repente deixaram-se comandar...
NR – Começámos, depois, a tocar o Romance de Branca Flor, que começa connosco a bater palmas nas pernas... E alguém, na plateia, diz: “as palmas, seus fascistas, também são folclore?”... e o António salta para uma mesa e responde: “depende de quem as bate!”...
AP – Aquilo acalmou e começaram a gostar... Mas havia essa discussão estéril do se é ou não folclore... E perguntei se um penico de barro feito por um artesão do Minho é ou não folclore... Alguém responde que é. E eu respondo: “é, uma merda!”. Descambou... E no fim, quando terminámos, queriam mais. Dissemos que não sabíamos tocar mais nada e que, então, fizessem como no Quando o Telefone Toca. Fizeram pedidos, e nós repetimos... Foi uma coisa de loucos!

Loucos? É o mínimo que se pode dizer... De facto, foram tempos muito confusos, mas também devem ter sido, ao mesmo tempo, muito estimulantes.

Ainda falta uma edição integral da obra da Banda do Casaco em CD. Esperemos que a iniciativa da Companhia Nacional de Música nos possa vir a devolver estas pérolas:

1975 – Dos Benefícios de um Vendido no Reino dos Bonifácios
1976 – Coisas do Arco da Velha
1977 – Hoje Há Conquilhas Amanhã Não Sabemos
1978 – Contos da Barbearia
1980 – No Jardim da Celeste
1982 – Também Eu
1984 – Com Ti Chitas

E assim, para terminar, fica em audição o tema “É Triste Não Saber Ler” do disco de 1976, bem demonstrativo do porquê deste grupo merecer um lugar destacado na história da música.

8 comments:

LisbonGirl said...

Que post tão giro! Muito interessante!:)

LisbonGirl said...

Ali, ao pé dos ovos...fica melhor "de que vale a pena transcrever a seguinte passagem". O "de" tem que lá estar. transcrever é de... transcrever alguma coisa de algum lugar. Siga!...
...que não é folclore!...Adorei o post e a história! Giríssima! já não me lembrava bem da Banda do Casaco!... Só da Né ladeiras e das sua ..."três luzes acesas serão o meu sinal..." e da Gabriela e o seu "...homem muito brasa, homem muito brasa, para meter na mala e levar para casa..." :)

strange quark said...

Obrigado pela correcção...

A Banda do Casaco... pois, um grande grupo, sem dúvida. Foi do melhor que por cá se fez. Os elementos nucleares da Banda encontram-se, hoje, dispersos e ligados sobretudo à produção musical. Na obra que compuseram há muita matéria a explorar e não vejo ninguém a fazê-lo. Nessa mesma entrevista, eram peremptórios em afirmar algo que eu próprio penso há um tempo, que a música tradicional portuguesa é pobre. E isso foi uma das razões que os levou a explorar múltiplas sonoridades.

E a prenda sonora aí ao lado? Gostaste?

Já agora, para quem vem aqui, ainda que ocasionalmente: gostam/gostaram da música? :))

rita maria josefina said...

O 'Hoje há conquilhas (..)' é peça cá da casa! E claro que quando deram esse concerto que referiste no blog ainda eu andava sei lá onde... Descobri-os há relativamente pouco tempo graças a RADAR e adorei!
Ah e sim eu gostei da musica!

:)

strange quark said...

:) Nessa altura já cá andava, mas era muito novinho para essas andanças e para perceber o que se estava a passar. O primeiro disco que conheci da Banda do Casaco foi precisamente o "Coisas do Arco da Velha" comprado pelo meu irmão. É a vantagem de se ter um irmão 8 anos mais velho... (não é a única, note-se!)

À tarde vou para o Hotel Villa Rica alimentar a alma com a reprodução de música levada aos detalhes mais ínfimos.

rita maria josefina said...

é verdade, ter irmãos mais velhos, no que toca a musica é uma vantagem! a minha irmã e 11 anitos mais velha , e graças a ela, já bem novinha, ouvia grandes sons como Siouxsie, B52's, The Cure, Smiths.. ando so on and so on...

Que venhas com a alma bem alimentada!

Bom fim de semana
:)

strange quark said...

Saciado... :D

Bom fim de semana!

extravaganza said...

Muito bom, mesmo! Ainda não tinha lido com a máxima atenção. Sobre a Banda do Casaco tenho uma vaga ideia de ouvir falar neles e de ouvir algumas músicas soltas (não sei precisar onde!) mas talvez no rádio do nosso Mini vermelho (ahahah). Eis uma boa oportunidade para perguntar aos meus pais o que me dizem deles, 30 anos depois!